#365Posts – “As pessoas só fazem conosco o que permitimos”

O Feissy deve ser o maior repositório de frases prontas e de autoajuda do universo, todas na forma de gráficos para impedir que pessoas com deficiência visual possam beneficiar-se da “sabedoria” que por lá grassa.

Um amigo compartilhou a seguinte imagem:

"As pessoas só fazem com a gente, aquilo que nós permitimos"
“As pessoas só fazem com a gente, aquilo que nós permitimos” (sic)

Nem vou entrar no mérito da pontuação inadequada, ou do quão nada a ver me parece a imagem para ilustrar esta frase. Porém, gostaria de manifestar minha opinião de “não é bem assim”.

Na quarta de cinzas passei a tarde inteira na loja da Claro, para repor meu iPhone que matei afogado, e fiquei conversando com umas pessoas simpáticas que também aguardavam atendimento. Especificamente falava com um senhor, ex-lutador de boxe, e duas senhoras — uma na faixa dos quase cinquenta, bem bonita — e outra na faixa dos quase trinta, lindíssima. Todos tinham histórias de abuso para contar, e lembro de três que posso citar de memória.

Primeiro o homem contou que sua sobrinha depois de trabalhar o dia inteiro, e passar mais algumas horas estudando, voltava para casa tarde da noite, de ônibus, exausta. Um marmanjo qualquer aproveitou-se da letargia da moça para tirar o pinto pra fora da calça e se masturbar esfregando suas vergonhas no braço dela. Por duas vezes ela teria acordado, sendo que na segunda ela flagrou o cara guardando a ferramenta, e percebeu seu braço todo sujo. Um rapaz que estava no banco de trás também percebeu o que tinha acontecido, e liderou um linchamento com o tarado.

Depois, a mais jovem das senhoras contou que estava com uma amiga do trabalho, às sete da manhã, saindo do metrô, para irem trabalhar. Um cara que estava parado na porta simplesmente apertou a bunda dela, segundo suas próprias palavras, “de um jeito que nem meu marido faz”. Ela xingou muito ali mesmo, gritou, chamou a segurança, mas não houve nenhum justiceiro para linchar o tarado, que em retribuição aos seus gritos de desespero ofereceu um riso de escárnio.

A terceira história foi contada pela senhora de mais idade, e dizia respeito a ela saindo do trabalho, em uma loja no Centro do Rio, e tendo de passar nas proximidades de algum bloco de carnaval, ocasião em que um sujeito “gigante”, segundo ela, começou a segui-la e a fazer propostas indecorosas. Logo ele estava no seu encalço, avisando que ia ser bem rápido e ela logo poderia pegar seu coletivo pra voltar pra casa. Foi salva porque entrou num bar e disse ao segurança que aquele cara a ameaçava, e este acabou recebendo uns “carinhos” dos leões de chácara do estabelecimento.

Essas três histórias mostram o quão falaciosa é essa máxima de “só fazem conosco o que permitimos”. Digo, em alguns casos é verdade, mas não em todos. Ou mesmo que seja em todos, para isso ser considerado verdade requer-se da “vítima” um nível de consciência que não se pode exigir de pessoa nenhuma.

Dizer que qualquer uma destas três mulheres (que são apenas exemplos de um oceano de mulheres que sofrem violência diariamente) é responsável pela agressão que sofreu é uma maneira muito filha da puta de culpabilizar a vítima em vez responsabilizar o verdadeiro agressor.

Não quero entrar numa vibe de feminista, ou bancar o engajado em lutas pelas causas sociais e humanitárias. Não sou nada disso. Admito que prefiro que outros levantem bandeiras e deem a cara a tapa, enquanto eu cuido do meu próprio umbigo, da minha casa, das minhas coisas, na confiança de que se todo mundo fizesse o que eu faço o mundo seria um lugar melhor.

Entretanto, é incontável o número de pessoas — principalmente mulheres, homossexuais e transexuais — que sofrem violência diariamente, simplesmente por causa da sua identidade de gênero. É como se o fato de uma mulher sair à rua desse direito a qualquer um de fazer comentários agressivos, de beliscar sua bunda, ou de querer comê-la em um beco qualquer do Centro. Como se o fato de alguém ser um homossexual do tipo “pintosa”, ou travesti, desse o direito de qualquer um espancar e matar a outra pessoa, como se a humanidade e a cidadania do outro fossem menores que a do agressor.

Quando as pessoas contaram suas histórias de violência (que em dois casos resultaram em mais violência — um linchamento público e um espancamento, que dão a mesma falsa sensação de justiça que ver um filme do Steven Seagal ou do Charles Bronson) — a única coisa em que consegui pensar foi o pensamento recorrente de que se eu tivesse um filho homossexual ou uma filha mulher, a primeira coisa que eu faria seria matriculá-los em uma escola de defesa pessoal, para que eu tivesse a (também falsa) sensação de que assim estariam menos vulneráveis às violações e agressões do mundo.

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1 comentário
  • Regiane Responder

    Hahahahaha é sério que você interpretou esta frase baseado nesses tipos de histórias? É óbvio que ninguém está falando que a vítima de um sequestro é culpada, mas sim de situações corriqueiras, como por exemplo, ter um namorado que te xinga todos os dias ou um chefe que te humilha, coisas assim… Há sim casos em que a “vítima” é a maior culpada, afinal ninguém dá o segundo tapa se a pessoa não “revidou” logo no primeiro. Na verdade, desculpe, mas eu sou só uma merdinha de pessoa que fico incomodada porque não sei ter empatia com os outros… Desculpa, mas o mundo é uma bosta por causa de gente como eu. Mas só sei ser assim, entende?

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