Vai com Deus, Jacão (homenagem tardia a um cara fodástico)

Tenho uma memória péssima para datas, então não sei precisar o ano em que conheci o Jacão (o nome dele era Jair, mas obviamente ele tinha um apelido, assim como todos que se relacionavam com ele). Nossos caminhos começaram meio atravessados, mas não demorou nada para que descobríssemos que para muito além de um dia virmos a assinar os mesmos três pontos na assinatura éramos Irmãos. Não de sangue, claro, porque a vida não é uma novela mexicana, mas de coração, de valores, de vida.

Aprendi pra caramba com aquele gordo.

A primeira coisa que aprendi com ele foi humildade: por conta de mal entendidos inúmeros acabei virando, sem nunca ter visto o cara, “inimigo” dele. Um dia ele foi na minha casa para pôr as coisas em pratos limpos, e depois de meia hora de conversa me convidou para trabalhar com ele: “Janio, preciso de alguém que saiba muito de programação pra me ajudar, vamos unir nossas forças que ninguém nos segura”. Foi verdade. Os “concorrentes” fofoqueiros que tinham armado para tentar enfraquecer os dois comercialmente sentaram no patê ao ver a primeira dupla de gordos dar baile de competência na cidade.

A segunda coisa que aprendi com o Jacão foi bom humor. Mesmo quando ele estava extremamente puto ele não perdia a verve humorística, o sarcasmo, e com a mesma naturalidade que falava em “talinda de preços” ele dizia “eu estou numa ilha cercado de imbecis por todos os lados”, e sempre ria quando retrucávamos “daqui só dá pra ver um, bem grande e gordo, mas é um só”.

Aprendi com o Jaca a apelidar os clientes com trocadilhos originados de seus nomes. Por exemplo, o Dr. Nascimento era o Pai Naná; o Paulo Freitas era o Pai das Fritas; tinha o Sasquat (que a identidade dele morra em segredo comigo); o Fuinha, que sempre que eu via tinha que morder os lábios para não rir na cara dele.

O Jacão era um escroto, dos mais especialistas em escrotice. Era inteligente, muito acima da média. Era divertido. E acima de tudo, o Jacão era verdadeiro, sincero e honesto. Nunca vi o Jaca se meter em rolo, nunca o vi fazer uma tramoia, ou mentir. Por mais que pudesse ser “humilhante” admitir um erro, ele o fazia de cabeça erguida, e assumia as consequências.

O Jaca tinha uma paciência gigante, era confiável, um grande amigo.

Ele e eu tínhamos naquela época mais uma coisa em comum: ambos éramos casados com mulheres muito ciumentas. Foi dele que ouvi pela primeira vez: “queria ter a grana que minha sogra acha que eu tenho, e comer as mulheres que minha mulher acha que eu como”. E ele ia além: “e ser tão corajoso quanto minha filha acha que sou”.

Quando nossas mulheres nos tiravam do sério a gente parava um pouco de trabalhar e ficava tirando o maior sarro delas pelas costas. Zoávamos um ao outro, e rapidinho estávamos prontos para outra sessão de ciúmes injustificado.

As muitas histórias

Jacão e eu passamos por muitas histórias juntos.

Uma vez estávamos informatizando um rodeio, numa cidade vizinha. Era trabalho para o fim de semana inteiro, a grana valia a pena. A mulher do Jaca rapidinho achou programação para aproveitar o fim de semana sem o marido. A minha, a seu turno, embestou que o Jaca e eu tínhamos amantes com as quais nos esbaldaríamos o fim de semana inteiro, e acabou se socando no carro para ir com a gente. Azar o dela, pois o trabalho era tanto que nem pra beber água a gente tinha tempo, então ela passou dois dias praticamente imóvel, feito uma múmia. Na volta, no domingo à tardinha, ela me torrou tanto a paciência que praticamente saí de mim. Como havíamos ido no meu carro, voltei dirigindo, em alta velocidade porque minha “frau” queria chegar cedo em casa, e acabei fazendo uma ultrapassagem que — segundo eles — foi extremamente arriscada, que implicou eu passar por entre dois caminhões (um que ia e outro que vinha) tirando fininho nas duas laterais. Quando ficamos os dois sozinhos ele me perguntou: “cara, não teria sido mais fácil passar pedra hume na fulana pra ela voltar a ser virgem? Sim, porque é a única explicação para forçar aquele soluço nela que a fez contrair toda a musculatura, inclusive aquela”.

Outra vez ficamos trabalhando até tarde num cliente, eu já havia me separado (o Jaca jamais viria a se separar da companheira dele, que por mais geniosa que fosse sempre foi isso mesmo, a parceira, companheira para todos os momentos), e a família dele estava viajando. Na minha casa só tinha água na geladeira, na casa dele a situação não era melhor. Nossos estômagos roncavam feito um caminhão sem surdina subindo a serra tamanha a nossa fome. No meio do nada uma pizzaria aberta. Paramos e pedimos uma pizza “da casa”, que era a única disponível. “Gordo do céu”, dizia eu, “essa pizza está muito da boa”. “Pois é, gordo, eu jamais imaginaria uma pizza boa dessas nesse fiofó de mundo”, respondia ele. Terminamos de comer e pedimos outra. A fome passou, e quando a segunda pizza chegou descobrimos que nossos sentidos estavam alterados, e a pizza era horrível! Tivemos um ataque de riso os dois, naquela pizzaria do fim do mundo, um rindo da cara do outro a elogiar o lixo de pizza que minutos antes parecia o manjar dos deuses.

Não sei se foi antes ou depois da pizza, os negócios não estavam muito bem, e resolvemos ir às cidades vizinhas para prospectar oportunidades, instalar umas demonstrações de nossos sistemas, e tentar ganhar mercado. Chegamos em Torres, e a cada vez que passávamos numa determinada esquina do Centro um cara nos parava para saber se estávamos perdidos e precisávamos de informação. Lá pela sexta vez ele parou e perguntou: “por favor, onde fica a rua Jair Corrêa Rocha?”, e ante a confusão do cara emendei: “a gente precisa chegar na esquina da Jair Corrêa Rocha com a Janio Sarmento, o senhor sabe onde é?”. O cara não sabia, mas fazia ideia: “sigam nessa direção, é certo que vocês se acham!”

Quando compramos nossos primeiros telefones celulares, quando alguém ligava no telefone dele e perguntava quem estava falando ele respondia: “Karol Wojtyla”, e quase sempre a pessoa pedia desculpas pelo engano. A gente ria muito disso.

Os três pontos

Quando fui formalmente convidado a fazer parte da congregação que adiciona três pontos à assinatura, o Jacão me disse: “pô, agora vamos ser irmãos, só fico triste que não seja eu quem te convide”. Na noite em que vi a Luz ele estava lá, com aquela cara redonda e gorda irradiando orgulho de me ver ali entre seus iguais. Quando fui pela primeira vez na Loja dele, ele ficou ainda mais feliz. Tão feliz que nem tive coragem de dizer: “a minha é mais bonita que a tua Jacão”. Considere esta revelação, amigo, como uma desforra à cara de paisagem com que fiquei quando liguei para minha cunhada e pedi para falar contigo e ela disse “o Jair faleceu já faz um ano e sete meses”.

A última história

Foram muitas histórias que passamos juntos, foram anos de convívio. Daria para escrever um livro.

Mas teve um episódio que marcou o afastamento de nossos caminhos. Uma história que na hora pareceu ruim, mas que me permitiu ganhar o mundo, ir para a minha vida, me encontrar comigo mesmo e ser quem eu sou. Mudei de cidade, de Estado, e de vez em quando nos encontrávamos e botávamos o papo em dia.

A última peça

Hoje o Jaca me pregou sua última peça, como já adiantei acima. Sonhei com ele e deu uma vontade intensa de telefonar, de saber dele, de dar umas risadas. Liguei pra sua casa, minha cunhada atendeu. Quando perguntei: “o Jacão taí?” ela respondeu: “o Jair faleceu faz um ano e sete meses, tu não sabia?”; fiquei atônito, não segurei as lágrimas, mas quase ri ao visualizar a cara gorda dele rindo da saia justa.

Eu deveria ter te telefonado mais, Jacão. Deveria ter aprendido mais coisas contigo — aposto que teu repertório de escrotices vai divertir muita gente aí no céu. Deveria ter te agradecido por teres sido um grande amigo, um irmão como bode nenhum vai conseguir ser.

Jaca foi cedo, nas minhas contas tinha pouquinho mais de 50, se muito. Mas poderia ter ido para o outro lado com cem, duzentos anos de idade, que ainda assim estaria indo cedo demais.

Vai com Deus, meu querido amigo, meu irmão. Não te peço perdão de nada porque sei que nada tens a me perdoar. E espero que quando chegar o tempo de a gente se reunir outra vez tenhas preparado um chiste inédito. Porque tuas piadas velhas eu já conheço todas, gordo, e não vou rir só para te agradar, falei?

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