Das modernas técnicas de tortura: entrevista de emprego
É característico do ser humano ser cruel. Basta ver o quanto as crianças (de qualquer idade) se divertem ao ver cenas de gente se estabacando no chão, o quanto os desenhos animados são cheios de violência e situações perigosas pra tudo quanto é lado.
Há centenas de anos a diversão do povo era assistir a enforcamentos e apedrejamentos em praça pública. Os costumes evoluíram, e agora a crueldade é bem mais sutil: o povo se diverte fazendo campanha contra os direitos das pessoas, desrespeitando o espaço alheio, e fazendo entrevista para emprego.
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Toda moeda tem dois lados
Como já vivi um bocado, tenho experiência de ambos os lados da mesa, tanto como entrevistado como entrevistador. Se você não for do tipo extremamente sádico, ou extremamente masoquista, vai se ferrar em qualquer um dos lados.
Torturando o entrevistado
Essa certamente é a tortura mais fácil possível, tanto quanto é fácil dar tapa em bêbado ou chutar cachorro morto. Basta pensar que, via de regra, o entrevistado está desempregado, com a autoestima abaixo de fiofó de serpente, precisando do emprego como um viciado precisa de sua pedra.
Primeiro, vá para a entrevista sem tomar banho, se possível por mais de dois dias.
Aí você lhe pede que fale de sua experiência profissional. O infeliz, que já terá começado a se auto-torturar antes, terá lido tudo possível sobre a vaga na Internet, tentará dizer exatamente aquilo que ele acredita que você espera que ele diga. A não ser que o candidato tenha talento para as artes dramáticas, o que se desenrolará será uma tragicomédia pastelão que só é divertida pela medida do sadismo.
Peça ao entrevistado para falar de seu último emprego e do último chefe. Ele certamente terá vontade de dizer o quanto odiou aquele lugar, o quanto lhe faziam mal os colegas, o ambiente de trabalho, a mula que era seu chefe mas não sabia nada (“provavelmente dava pra alguém importante na empresa”). Mas, em vez disso, ele vai dizer que foi a melhor experiência da vida dele. Requinte de crueldade: pergunte por que ele saiu da empresa, e ouça uma baboseira do tipo “estou em busca de novos desafios”, quando na verdade ele preferia dizer que surtou e abandonou o emprego, que pediu as contas por esgotamento, ou então está escondendo que foi demitido porque passava mais tempo no banheiro jogando Tetris no celular do que trabalhando.
A técnica de tortura acima é particularmente eficiente porque o candidato já intui que no novo emprego vai encontrar situação semelhante, e começa a sentir a mesma humilhação outra vez, ali mesmo na entrevista, tendo de mentir.
Peça ao candidato para falar sobre seus defeitos. A não ser que ele seja extremamente masoquista, do tipo que anda com um cilício apertando a coxa, isso fará com que ele se arrependa de ter acordado àquela manhã, o fará desejar não ter nascido e — sofrimento máximo — terá de falar asneira com um sorriso nos lábios, porque ele precisa fazer isso.
Uma variação da técnica acima é fazer uma pergunta do tipo: “como você descreveria a si mesmo?”. É implacável, pois a não ser que você tenha entrado num jogo com outro torturador, essa pergunta pegará o candidato desprevenido, e mesmo que ele tenha respostas decoradas para recitar, seu momento de fragilidade e baixo amor próprio o farão experimentar toda a insegurança que só poderia ser descrita com “ninguém me ama, ninguém me quer, e eu sou um bosta”.
Interrompa a entrevista o tempo todo para ler mensagens no celular, ler e-mails, ou o que é pior: falar ao telefone. Melhor ainda se conseguir passar a impressão de que está entrevistando outras pessoas por telefone, e que estes têm mais chances de conquistar a vaga do que o infeliz à sua frente.
Agora, o gran finale da tortura com o candidato é dizer a ele: dentro de alguns dias entraremos em contato com o resultado da seleção. E quando ele sair pela porta pensando “colou, dessa vez colou” jogue o currículo no lixo, e nunca mais faça contato, nem para perguntar ou dizer as horas.
Torturando o entrevistador
Torturar o entrevistador é menos comum, porque em tese existem mais empregados do que recrutadores nessa indústria vital. Mas não é difícil.
Primeiro, vá para a entrevista sem tomar banho, pelo menos por dois dias.
Um bom começo, também, consiste em lembrar-se que tudo aquilo que você leu na revista e no livro de autoajuda como técnica infalível para se dar bem na entrevista de emprego os outros candidatos também leram, e até é provável que eles sejam melhores que você em interpretar. O entrevistador conhece suas respostas tão bem quanto as perguntas que fará, e tudo o que ele mais quer é que você seja autêntico.
Eis, portanto, a sua chance de torturar o entrevistador com toda a crueldade possível: repita os bordões, os clichês, a cada pergunta responda com a resposta que a revista mandou dar, e não entregue um milímetro de sua verdadeira personalidade a ele. Com um pouco de sorte ele vai suar frio e gemer de dor!
Quando o entrevistador perguntar qual seu nível de Inglês, diga que é intermediário, e que você lê e escreve bem. Ele saberá que isso deve ser interpretado com “eu sei usar o Babylon para fazer traduções porcas”, e vai doer nos ossos dele não poder te mandar pra longe.
Ao ser indagado de sua experiência profissional, você tem duas possibilidades de torturar o sujeito.
Se você for daqueles que trocam mais de emprego do que de cueca, cite apenas umas poucas colocações que teve, finja que ignora o fato de que informações podem ser checadas, e diga que “já fez de tudo um pouco”. Se você for do tipo que nunca teve um emprego, em vez de dizer ao entrevistador a verdade invente todo tipo de “trabalho voluntário” para encher linguiça. Acredite, os entrevistadores sofrem muito com esse tipo de mentira! Alguns chegam a ter urticária, com sorte você consegue fazer o cara sangrar ali mesmo, na sua frente!
Em algum momento o entrevistador vai perguntar onde você se enxerga dentro de cinco anos. Esse é o momento máximo da tortura, não perca a oportunidade!
Se quiser fazer uma tortura branda, diga que quer estar no lugar dele, e depois emende com uma piadinha besta do tipo “porque eu espero que você esteja ocupando o posto mais alto possível desta megablaster organização”. Se quiser fazer uma tortura realmente cruel, diga que espera estar dando o sangue pela empresa, fazendo turnos de 16h por dia, afundando seu casamento e perdendo a infância de seus filhos em nome da carreira. Isso vai fazer o entrevistador estertorar, porque ele sabe que é mentira, que você gostaria mesmo era de não precisar mais trabalhar daqui a cinco anos, pelo menos não para uma empresa que acha que trabalhar à exaustão, quase em regime escravo, é o melhor que um homem pode fazer por si e pelo seu dono, digo, pelo seu patrão.
Não esqueça de dizer “perfeccionismo é meu maior defeito”. Diga isto olhando no fundo dos olhos da vítima, digo, do entrevistador, sem piscar, com os olhos o mais esbugalhados que puder. As empresas odeiam gente que gasta horas refazendo um trabalho qualquer em vez de fazer o que tem de ser feito, e se você conseguir passar ao entrevistador a impressão de que não sairá da sala de entrevista enquanto não ficar tudo perfeito, ele pode até ter um colapso nervoso.
E falando em colapso nervoso, uma técnica bastante eficiente de torturar entrevistadores é descontrolar-se no meio da entrevista. Pior que o sofrimento que possa causar, o que mais vai doer na alma do entrevistador é o medo de que um dia um tipo maluco e desequilibrado possa vir a trabalhar na mesma empresa que ele. Pergunte se o plano de saúde da empresa cobre tratamento psicológico ou psiquiátrico. E se a empresa não incluir plano de saúde no pacote de benefícios, imediatamente demonstre pânico — crueldade extra se evidenciar sudorese e apneia acompanhada de lágrimas.
Não deixe de usar a técnica do telefone celular: quanto mais puder interromper a entrevista para ler mensagens ou atender telefonemas, melhor. Perfeito se puder marcar uma outra entrevista de emprego na frente do entrevistador, só ele e as paredes por testemunha. Se não tiver nenhuma outra, peça a um amigo para ligar na hora da entrevista. Se não tiver um amigo, configure o alarme do celular para soar igual ao toque de chamada e finja estar fazendo uma entrevista de emprego em outra empresa com melhor salário e mais benefícios. O entrevistador sempre se ferra nessa, pois ou ele percebe que está perdendo tempo com candidato que tem outra coisa melhor em vista, ou ele percebe que está diante de um cafajeste mentiroso, mas a etiqueta o impede de ser sincero.
E o ponto alto da tortura com o entrevistador: ao sair, peça um número de telefone para ligar para saber do resultado da entrevista. Isso o deixará em profundo sofrimento e indignação; aí nos dias seguintes fique ligando pela manhã e pela tarde, diariamente, para saber como foi, para não deixá-lo esquecer da sessão de tortura que você infligiu a ele. E quando ele disser que não deu, a vaga foi preenchida por outro candidato, não pare de ligar, continue telefonando todo dia perguntando de novas oportunidades que possam ter sido criadas.
Independente de se você é homem ou mulher, o mesmo para quem está conduzindo a entrevista, ficar levando as mãos na genitália o tempo inteiro (melhor ainda se ato contínuo você cheirar os dedos) vai ser uma excelente maneira de torturar sua vítima! Olhar para o entrevistador com um olhar de “eu comeria teu fígado no feijão, e depois transaria com teu corpo morto até vomitar sobre ele” também causam dor e sofrimento que podem ser desesperadores.
Técnicas adicionais de tortura estendida
Claro que não é a mesma diversão quando você não pode presenciar o sofrimento de sua vítima, mas um verdugo experimentado se deleitará com a simples ideia de que sua vítima continue sofrendo além do fim do ato de tortura.
Se você for um entrevistado querendo espichar a dor do entrevistador, sugiro que você minta muito a seu respeito, finja ser quem não é, e deixe que seu Orkut, Facebook, Twitter e todos os demais meios de expressão na Internet falem o contrário. Nada causa mais dor a um entrevistador do que saber que aquele candidato que pareceu tão promissor na verdade escreve feito um orangotango, tem tatuagem na virilha (e mostra isso no Orkut — no Orkut!) e é homofóbico participante de comunidades do tipo “veado tem ki morre”. Também causa muita dor descobrir que o candidato ocultou informações acerca de um segundo emprego, de uma “empresinha” que ele toca nas horas vagas ou que ele é algum tipo de asceta.
Se o entrevistador quiser torturar por mais tempo, pode incluir o e-mail do candidato na newsletter da empresa, para que toda semana o infeliz receba um e-mail da firma em que prestou entrevista, mas nenhum diga uma palavra sequer sobre a vaga, a entrevista, ou mesmo considere que o leitor precisa é ganhar dinheiro antes de poder gastar comprando os produtos ou serviços anunciados. Se quiser ser ainda mais cruel, inclua o e-mail do candidato numa lista de e-mails à venda, para que outros carrascos se divirtam à custa do sofrimento dele. É uma crueldade ainda maior, pois a caixa postal do Hotmail que o candidato informou justamente para torturar o entrevistado — só pode ser, ninguém usa caixa postal do Hotmail a sério — vai lotar logo no primeiro dia, e quando ele realmente for selecionado para um emprego não ficará sabendo porque não tinha espaço para a mensagem de aviso.
Aliás, a linguagem pode ser uma excelente aliada para os torturadores. Se você está na posição de entrevistado, use e abuse de gírias, fale feito um MC compondo um rap na porta da boca de fumo (a não ser que a entrevista seja para rapper de boca de fumo, aí você tem que falar de maneira a obrigar o Professor Pasquale a consultar o dicionário para entender o que você quer dizer). Se for o entrevistador, demonstre o quanto você é superior ao entrevistado abusando de construções gramaticais complexas, vocabulário incomum, vomite “corporativês” em cima do candidato o tempo todo.
Conclusão
Torturar pessoas é um prazer inerente à natureza humana, mas se você fizer isso de maneira desordenada poderá ir em cana. Aproveitar situações cotidianas para exercitar esse prazer proibido é socialmente aceitável, e entrevistas de emprego podem ser um excelente laboratório para a tortura psicológica (e física: não mencionei, mas o entrevistador pode arranjar uma situação que prive o candidato de beber água, de ir ao banheiro ou de comer por horas consecutivas, por exemplo).
Quais são as técnicas de tortura que você conhece? Utilize os comentários para enriquecer esta discussão, conte o que você aprendeu, e quem sabe possamos vir a escrever juntos um manual do sadomasoquismo corporativo. Vale? Mas atenção: só os comentários mais inteligentes serão publicados, e eu nunca vou dizer se seu comentário foi suficientemente bom ou não, pois fiquei ligeiramente contaminado pelo espírito sadista deste post.