Tente não cagar regras para a vida alheia
Se você não chegou hoje às redes sociais, é certo que já se deparou com uma “arte” consistente de um fundo preto, letras brancas, a palavra “luto” em letras garrafais, sendo a letra “o” substituída por uma representação em tons de cinza da Terra. O texto tem diversos erros de Português, e diz que as pessoas não deveriam soltar fogos porque muita gente perdeu a vida em 2020. A cereja do bolo são os “emojis” de carinha triste e coração partido.

Nem sempre que essa porcaria aparece na minha frente eu reajo, mas quando tenho intimidade suficiente com a pessoa que compartilhou eu digo, superficialmente, o que penso. Agora vou explicar melhor por que essa besteira não passa de uma tentativa idiota de cagar regra na vida das pessoas, e por que gente minimamente inteligente e realmente preocupada com o semelhante não deveria passar esse lixo adiante — em que pese eu mesmo estar cagando regra agora.
Primeiro, que o ano novo é, para muitas pessoas, a única oportunidade de realmente reacender a esperança para o ano vindouro. Gente que passou o ano inteiro trabalhando sem poder curtir férias, sem poder viajar, e em se tratando de 2020, passou pelo menos dez meses dividida entre a necessidade de ganhar o pão de cada dia e a necessidade de isolar-se para evitar a propagação do vírus. Querer forçar ainda mais uma culpa na pessoa, alijando-a da alegria de compartilhar um dia de mesa farta na companhia dos familiares próximos, da mesma casa, é de uma crueldade bestial.
Segundo, que se a pessoa realmente estivesse tocada com as quase 200 mil vidas ceifadas no Brasil ela não faria campanha para fazer as pessoas sentirem culpa por confraternizar em suas casas na única oportunidade que têm. Fariam campanha pelo uso irrestrito de máscaras faciais, ficariam em casa e incentivariam os outros a fazerem o mesmo, pois enquanto não houver uma vacina e considerável massa de imunizados o vírus não vai parar de circular, e os riscos não vão ser menores.
Terceiro, que fazer minuto de silêncio não tem efetividade nenhuma nem para demonstrar a consternação pelas mortes, nem para ajudar a aliviar a gravidade da pandemia. Orar pelas pessoas que se foram, ou qualquer outra manifestação, deve ser de cunho íntimo, expressão espontânea do que sente a pessoa e que seja adequado à sua espiritualidade ou religiosidade, sem que isso precise ser sequer sugerido para os outros (muito menos pelo uso da culpa como incentivo).
Por fim, quem não respeita distanciamento, frequenta festas, bares e boates (e igrejas, e centros espíritas ou participa de qualquer outro tipo de aglomeração) em plena pandemia, já deixou bem claro que não está nem aí para a vida e a saúde dos outros. Não vai ser uma arte capenga crivada de erros de gramática usando “emoji” tristinho que vai fazer esse tipo de alma sebosa se redimir.