Como combater a normalização do preconceito
Em tempos de pandemia, quando as pessoas de bom senso fazem absolutamente tudo ao seu alcance para se manterem isoladas, é natural que as conversações em redes sociais sejam fortalecidas. Para muitos sequer existem outras possibilidades de comunicação que não seja pela Internet.
Com isso, um efeito secundário acaba acontecendo: as pessoas acabam sendo expostas muito mais frequentemente a valores — no mínimo — questionáveis que são vomitados como se fossem exercício de expressão, mas na verdade são puro preconceito.
Por um lado é fácil bloquear as pessoas e fingir que não se viram os impropérios. Faço muito isso. Mas às vezes tenho vontade de educar as pessoas, e é quando faço uso de uma técnica infalível: a de me fazer de burro e pedir para a pessoa explicar a piada. Aliás, funciona presencialmente também, e é até mais divertida.
Vou explicar a mecânica da técnica contando duas historinhas.
O vírus pelotense
Participo de um grupo gigante (uns 50.000 membros) de vizinhos de um certo bairro de uma certa capital. Com tanta gente é impossível evitar que pessoas escrotas acabem vomitando sua indigência intelectual e moral sobre os demais.
De repente rolou uma discussão sobre “vírus chinês” × “Coronavírus não tem nacionalidade.” O contexto é que eu comentei que tenho vontade de esfregar na brita a cara de quem fala em “vírus chinês” até brotar o osso.
A discussão foi boa, e um dos participantes parece até ter entendido porque não se pode dizer que o vírus tenha nacionalidade, e que é de um racismo absurdo associá-lo à China. Um dos argumentos foi que se o vírus tivesse sido descoberto primeiro em Porto Alegre não se poderia chamar de “vírus gaúcho,” se em Florianópolis não poderia ser “vírus manezinho.”
Mas uma senhora apareceu fazendo uma “piada”.
— E se o vírus tivesse sido descoberto em Pelotas? kkkkk
— O que nasce ou tem origem em Pelotas é pelotense. Mas não entendi por que a senhora está rindo. Pode me explicar a graça?
— O que dizem das pessoas que nascem em Pelotas? kkkkk
— Que são pelotenses? Reitero, não consigo entender a graça disso. A senhora pode fazer o favor de explicar?
— Não dizem que quem nasce em Pelotas é gay? Seria um vírus gay? kkkkk
— Mais uma vez peço desculpas, mas não entendo por que a senhora está rindo de uma declaração asquerosamente preconceituosa como essa. Poderia por favor me explicar onde está a graça?
“Cumia dinovo”
Nesse mesmo grupo, há uns dias mais atrás, uma pessoa propôs uma típica brincadeira de quem sofre com o afastamento de outras pessoas. Perguntou algo como:
“Duas horas da manhã, você está no seu quarto dormindo. De repente ouve batidas na janela do quarto, vai ver e é seu ex ou sua ex querendo entrar. O que você faz?”
Houve muitas piadas óbvias, muitas respostas até engraçadinhas (tipo: eu morreria, pois moro no 15º andar e a última coisa que imagino é minha ex escalando a parede para me assustar), e uma que foi de uma absolutamente desnecessária grosseria:
— Cumia dinovo kkkk
— Oi, tal fulano — perguntei eu — isso foi uma piada? Se sim, você pode explicar a graça?
— Ué cumia dinovo kkkk
— Você só repetiu o que eu não entendi antes, mas não explicou onde está a graça. Você pode me explicar por que isso que você disse é tão engraçado?
— Pela resposta já to sabendo a fruta que tu gosta kkkk
— Por favor, não conte uma piada nova sem eu ter entendido a primeira. Você pode fazer o favor de explicar qual a graça dessas duas colocações suas? Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas só quero que explique a piada para eu poder rir junto.
Deste dia em diante não vi mais o tal fulano fazendo padinhas misóginas ou homofóbicas no grupo.
Não seja conivente com a escrotice
Escrevo esta parte do texto especificamente para meus leitores homens. E esta serve para pedir que vocês não sejam coniventes com a escrotice, nem deixem seus amigos serem babacas apenas por reação.
Muitos de nós podemos até não fazer piadas machistas ou misóginas, mas tampouco nos manifestamos contra este tipo de atitude. Precisamos mais do que não espalhar preconceito e maldade: devemos evitar que as pessoas que podemos de alguma maneira influenciar destilem preconceito e maldade na nossa frente.
Precisamos deixar nossos pares desconfortáveis com suas manifestações de racismo ou homofobia, xenofobia ou aporofobia (aversão a pessoas sem recursos, raiva de pobre), ou de qualquer tipo de preconceito. Ao fazer isso, estejamos preparados para um discurso sem graça nem sentido atacando o “politicamente correto” que “acabou com o humor.”