A culpa não é do WhatsApp
Recentemente tenho visto pessoas letradas e viajadas argumentando que a “culpa” pela eleição de Bolsonaro, bem como de tudo o que isso significa e implica (escalada da violência, perseguições aos não eleitores dele, desrespeitos diversos) seja das fake news que seus eleitores espalham por WhatsApp, logo a culpa seria do aplicativo em si (que muitos chamam equivocadamente de “rede social”). Para mim é até constrangedor ler esse tipo de argumentação proveniente de pessoas cultas e instruídas.
Em primeiro lugar, o WhatsApp é apenas um aplicativo de troca de mensagens. Pessoas (ou robôs, como dizem ser no caso dos grupos pró-direita) enviam mensagens que outras pessoas consomem. Não há o conceito de “alcance de publicação” no WhatsApp porque, mesmo em se tratando de um grupo, as mensagens são geradas por pessoas e entregues para outras pessoas, diretamente de terminal a terminal (é quase correto dizer que de celular a celular).
Em segundo lugar, só quem pode visualizar o conteúdo de uma mensagem de WhatsApp são a pessoa que enviou e a pessoa que recebeu. Devido à criptografia de ponta a ponta não tem como provedores de acesso, empresas de hospedagem ou outras terem acesso ao que trafega na rede toda. Somente quem está “nas pontas” tem essa possibilidade no que diz respeito às mensagens que tenha enviado ou recebido.
Assim, é absolutamente ridículo que as pessoas clamem por “diminuição do alcance dos grupos” ou por “checagem das notícias antes de publicá-las”. Para o sistema (os dispositivos de computação envolvidos na troca de mensagem) não tem diferença nenhuma entre um vídeo falso em que Bolsonaro apareça dizendo inteligente e educadamente como pretende implementar o seu programa de governo e um da filha do meu amigo rindo com as peraltices do pai. Para poder censurar as fake news o sistema teria de quebrar a privacidade de todo e qualquer usuário, em grupos ou fora deles.
Também é tendencioso dizer que o WhatsApp fornece o meio “perfeito” para a proliferação de inverdades que possam chegar a definir uma eleição.
Um dos argumentos que as pessoas usam, e que parece razoável mas também é vazio, é o de que todo mundo tem celular, e muitas pessoas só têm acesso a um plano com WhatsApp ilimitado, mas sem conectividade que lhes permita checar a veracidade daquilo que estão lendo e que muito provavelmente vão replicar.
Para entender por que não faz diferença se a pessoa pode ou não checar a autenticidade do que vai repassar é preciso pensar em termos de psicologia, tanto individual quanto de massas.
Qualquer um que já tenha tentado vender mais do seu produto ou serviço sabe que para atrair a atenção e a simpatia do comprador precisa criar um vínculo emocional com este. No caso, o produto que se deseja vender é um candidato a presidente, e os compradores são a massa amorfa de indivíduos que poderão comprá-lo, ao preço de um voto.
Também é sabido que as pessoas em geral não querem pensar. Em vez disso preferem informações prontas, processadas, que possam ser “usadas” com esforço zero, ou o mais próximo disso possível. Nem ler as pessoas querem, prova disso é o sucesso de quem cria conteúdo em vídeo.
Então, desculpem os que acham que se a população tivesse mais acesso à Internet ela o usaria para checar veracidade de informações, mas vocês são idiotas de pensar isso — e eu também pensava assim até ontem. Com o acesso extra à Internet as pessoas vão ver pornografia ou vídeos de gatinhos, ou de gente supostamente levando uma vida de riqueza e ostentação.
As pessoas aceitam como verdade qualquer coisa que lhes chegue via WhatsApp por dois motivos:
- as pessoas concordam com os valores implícitos naquilo que estão consumindo (e que vão repassar);
- as pessoas que difundem as informações fazem parte dos círculos de confiança de quem consome e aceita sem sequer esboçar um lampejo de questionamento.
Assim, se Bolsonaro vai ser eleito presidente do Brasil dentro de poucos dias por causa da atuação dos grupos (de pessoas) no WhatsApp, a causa disso é que as pessoas, em sua maioria, concordam com aquela mentirada toda que recebem. O valor intrínseco de um “ado, ado, ado, Bolsonaro vai matar viado” não está na veracidade de que a prática homossexual vá ser punida com pena capital; mas sim no fato de que as pessoas que aceitam este tipo de discurso têm o desejo de ver a sociedade livre “deste tipo de gente”.
Ao mesmo tempo, as pessoas querem viver bem. Para uns, viver bem é ter comida no prato todo dia; para outros, é andar de Range Rover; para outros, é poder trocar de iPhone todo ano, e manter-se em dia com as novas versões. Quando as pessoas veem sumir seus privilégios (em alguns casos) ou seus direitos (como o de alimentar-se todo dia), é natural que procurem-se culpados; as pessoas por instinto precisam de alguém para quem apontar o dedo e responsabilizar pelo que de mal lhe acontece.
Além disso, as pessoas têm, em geral, memória curta e não conseguem processar detalhes depois de um certo tempo. Como foi o PT quem esteve por mais tempo no poder, e todo político é ladrão e corrupto (segundo a crença geral), então muita gente concorda que é a vez de o PT entrar no barril. E qualquer argumento que ratifique essa crença será aceito cordatamente.
Se não houvesse WhatsApp para capilarizar as mensagens de ódio e de mentiras contra pessoas (candidatas a cargos eletivos ou não, nomeadas ou não), o povo acharia um outro meio para propagar seus discursos: correntes via xerox, boca a boca, rádios pirata, ou o que fosse.
Da mesma forma, não adiantaria de nada o PT, a coordenação de campanha do Haddad, ou quem fosse, querer combater fake news no WhatsApp usando os mesmos métodos que as popularizam, pois como já explicado, as pessoas “compram” a versão que mais lhes apetece, e para a maioria da população brasileira enfiar o dedo na cara do país que ficou 13 anos no poder é o que lhes faz salivar.
O WhatsApp é uma ferramenta de comunicação, apenas isso. Se as pessoas que querem acreditar em mentiras não o utilizassem, seria uma outra ferramenta qualquer. Das pessoas que entendem como o “Whats” funciona, só as mesmo as operadoras de telefonia têm motivos para querer vê-lo sumir do planeta, uma vez que ele tem o potencial para fazer com que os custos de comunicação entre pessoas distantes (seja à distância de um DDD ou de um DDI) seja cortado a, praticamente, zero.
Os demais, temos que entender que aqueles que se viram privados de Miami uma ou duas vezes por ano, e que tiveram de adiar a troca do Camaro para o ano que vem, estão muito indignados com o PT “e tudo isso que está aí”, e acreditam em salvador da pátria. E é por isso que as notícias falsas nascem e proliferam, principalmente para abalar as já fragilizadas estruturas emocionais daqueles que não têm condições de entender a política por si mesmos.
Ou seja: sua tia não é fascista, só não tem vontade de sair da própria bolha social — assim como eu não tenho vontade nem coragem de sair da minha bolha de civilidade.