Tristeza de quarentena
Essa semana estava curtindo minha rotina em tempos de isolamento social e tentando entender por que eu me sentia triste, desmotivado, sem força emocional nem intelectual para nada.
Afinal de contas, sendo bem honesto, o isolamento para mim não representa muita mudança.
- Já faz anos que trabalho de casa, não há novidade nenhuma para mim no modelo de home office.
- Eu já há muito tempo que não frequento festas e baladas, e eventuais idas ao meu bar favorito também não costumavam durar além das 22h.
- Meu volume de trabalho não diminuiu com o isolamento; na verdade, aumentou, então tenho tido ainda menos tempo livre do que tinha antes, e desconheço esse tédio que as pessoas dizem experimentar.
Então, se está tudo bem, se minha rotina foi minimamente alterada — principalmente considerando a das outras pessoas, e o quanto os outros em geral tiveram muitos aspectos de suas vidas impactados pelo distanciamento — por que eu estava passando por este período depressivo?
Hoje entendi o que se passa comigo nessas ocasiões: é luto.
Oficialmente, o Brasil ontem ultrapassou a marca de 10.000 mortos de COVID-19 no país inteiro. Nem vamos discutir o assunto da subnotificação, não cabe aqui. Tampouco quero entrar na discussão acerca de quem nega a existência da pandemia, seja lá por que motivos.
Quando um doente de COVID-19 entra numa UTI ele precisa, naturalmente, ficar totalmente isolado de seus entes queridos. Enquanto o paciente estiver internado sua família e amigos não poderão fazer visitas (por motivos óbvios), e caso a pessoa venha a falecer, nem mesmo um velório e um enterro dignos ela terá.
Assim, mais de dez mil pessoas precisaram atravessar o momento de desencarnar, no Brasil, na mais completa solidão; alguns até ficaram alijados de si mesmos, haja vista o procedimento de intubação ser tão invasivo que requer que o paciente fique sedado, em coma, para aguentar o tratamento.
Foram mais de dez mil enterros sem velórios, falecimentos sem despedida, mais de dez mil planos interrompidos sem a hipótese de um pedido formal de perdão, sem um derradeiro “eu te amo”, sem nem ao menos poder ver a figura das pessoas amadas pela última vez antes de fechar os olhos para sempre.
Por mais que eu ocupe minha mente com o trabalho, com novos aprendizados (felizmente, eu não paro de estudar, nunca), com qualquer atividade criativa, com conversas com meus amigos; por mais que eu objetivamente direcione energia para coisas positivas e saudáveis; por mais que eu tente, não consigo deixar de pensar que se por acaso eu pegar essa porra dessa doença eu provavelmente vou morrer sozinho num hospital sem poder nem ao menos pedir desculpas à minha mãe por causar-lhe a dor de enterrar um filho. Não consigo deixar de pensar que tenho familiares e muitos amigos com a saúde mais fragilizada, sobreviventes de câncer, imunossuprimidos, diabéticos, hipertensos — e qualquer um deles que venha a cair numa UTI, caso tenha a sorte de conseguir leito, provavelmente vai sair de lá para um contêiner ou caminhão refrigerado até que o corpo seja desovado em uma vala comum ou coisa assim.
É um luto pelas mortes que ainda não aconteceram e que talvez nem venham a acontecer, a minha e a de quem me orbita. E também é o pesar pelas milhares de vidas ceifadas pelo que não é meramente fatalidade, é também resultado de um longo processo de vulnerabilização das pessoas mais pobres, de destruição da esperança e da dignidade humana.
Meus pares continuam tristes, agora até mais do que antes.
A esperança que me move, contudo, é que as pessoas acordem para o fato de que o mundo mudou, o novo normal ainda é desconhecido mas certamente é diferente do normal que até então era nossa base — e que só poderemos prosperar como sociedade, doravante, calcados na solidariedade, na empatia e na generosidade. Quem viver verá.