#365Posts — Os Penetras (reminiscências de vidas passadas)
Não sei o ano em que isso aconteceu, só sei que foi numa vida passada quando eu lambia os beiços por um fandango, morava em Taquara, ainda não tinha habilitação para dirigir e era um pouco mais preocupado com o futuro do que agora. Mas certamente foi ainda nos gloriosos Oitenta.
Era sábado à noite e saí com meu amigo Charles em busca de diversão. Ambos com uma quantia de dinheiro que seria o suficiente para entrar em qualquer lugar, mas certamente não para matar a sede ou fazer um agrado a uma prenda, muito menos dar gorja aos garçons.
Em função dos parcos recursos financeiros, decidimos empreender uma caminhada até a sede campestre do CTG O Fogão Gaúcho, que dista um bocado do Centro, onde morávamos. “Vamos sair cedo e vamos na manha, aí a gente vai chegar lá e nem vai estar suando” — convenceu-me o Charles.
E assim saímos, dois vultos adolescentes e destemidos faixa afora rumo à diversão que valeria qualquer sacrifício.
— Mas tu tem certeza que tem baile hoje, Charles? — indaguei desconfiado.
— Certeza eu não tenho, mas mas também não temos coisa melhor para fazer.
Honestamente, eu não lembro mais o que estava vestindo naquela noite, mas não era pilcha, com toda certeza desse universo. Era calça jeans, sapato ou tênis, e provavelmente uma camiseta Hering branca. O Charles estava de camiseta regata com propaganda de escola de artes marciais, calça de agasalho de corrida e alpargatas.
— Charles, tu não acha que teus trajes estão meio inadequados pra ir ao CTG?
— Estão melhores que os teus. Eu pelo menos estou de alpargatas.
Foi com verdadeira alegria que chegamos à sede campestre d’O Fogão Gaúcho e ver o salão iluminado, o ronco da vinte e quatro baixos dando vida à noite; alegria esta que só não foi maior que a estranheza de ver a bilheteria às escuras, chaveada, e nenhum segurança do lado de fora.
Como não nasci de susto nem nada, estanhei a cara e me fui baile adentro. Tinha pouca gente, mas atribuímos o efeito à hora, meio cedo pra ter salão cheio em qualquer baile. Parecia até colégio de freira: as prendas mais de um lado do salão conversando à boca miúda, e a peonada do outro, bebendo e fazendo gritaria. Arrastando as botas no salão uns casais de mais idade, insuficientes pra mexer com a polvadeira.
Devo agora fazer uma confissão que talvez quebre muitos corações: quando eu comecei a frequentar CTG não foi pela cultura, não foi pela beleza da tradição gaúcha, tampouco por um senso de atavismo imemorial que circulasse junto ao sangue nas minhas veias. Foi pra aprender a dançar pra poder pegar mulher e me dar bem. Só que eu era um maula muito sem tino, e fiquei anos me arrastando feito um coxo engessado no salão. As prendas dançavam comigo mais por pena do que por qualquer outro motivo. Até que um dia, ninguém sabe como, muito menos sei eu, o bloqueio sumiu e eu aprendi a dançar, de uma hora pra outra, como num passe de mágica.
Então, como o milagre já tinha se operado, resolvi tirar uma das prendas pra dançar. Ainda lembro que o gaiteiro se esmerava para honrar todo o valor do Noel Guarany ao interpretar “Na Baixada do Manduca”.
Dancei uma marca com a prendinha, e quando fui devolvê-la ao seu lugar (naquela época eu era tímido, não me atrevia a mais do que dançar com a guria mesmo caso os pais dela estivessem no mesmo local) encontrei o Charles exibindo uma grosa de dentes, conversando animadamente com o chinaredo, e duas cervejas geladas me esperando.
— Não me pergunta por quê, só sei que o garçom não cobrou! — cochichou-me ele.
Bebemos, dançamos com as gurias, até que o Charles resolveu ir para o canto mais escurinho com uma novinha pra dar uns beijos, um pouco depois de eu ter resolvido ir ao banheiro para aliviar a bexiga. Índio grosso uma barbaridade fui direto para uma “casinha” pra não ter que urinar expondo as joias da família na presença de outros barbados.
Parece roteiro de filme francês, mas fui salvo por estar no reservado naquele instante. Enquanto eu me recompunha chegaram uns caras, conversando entre si. Atentei à conversa já em andamento.
— Tenho um três listras lá no carro, o fulano também tem um. Vamos pegar os furão (sic) e fazer charque do lombo deles.
— Pois é, eu vi um deles, o mais maloqueiro, até agarrando uma prima da aniversariante!
Eternidade, para quem não sabe, foram os segundos entre eu finalmente entender por que aquele baile estava tão estranho, atinar que uma turba de peões descornados queria nos linchar, e os dois informantes de ocasião saírem do banheiro para eu poder agir.
Percorrendo a trajetória mais curta possível fui até meu amigo e arranquei-o dos braços da prendinha.
— Cala a boca e vem comigo, depois te explico!
Enquanto os caras entravam pela porta dos fundos de facões em punho em busca dos penetras, meu amigo e eu saímos pela da frente e nos socamos numa carreta de sei lá o quê que havia num canto não iluminado do lado de fora do prédio. Cobrimo-nos com uns sacos de aniagem e rezamos para o disfarce ser suficientemente bom.
O suor escorria, a poeira e a aniagem davam coceira e vontade de espirrar, mas o mais difícil era aguentar o medo de ser descoberto porque o Charles não conseguia parar de rir; ele ria o mais silenciosamente possível, eu sabia, mas ele tinha era de estar mudo!
Ficamos ali até a festa acabar e todo mundo ir embora. Pulamos a cerca para ganhar a faixa novamente, e sabiamente nos limitamos a contabilizar os aspectos positivos da desventura toda.
— A cerveja estava bem gelada.
— E eu dei uns beijos na prendinha. Estou apaixonado, quero casar com ela. Pena que esqueci de perguntar o nome.
— O gaiteiro era bom.
— Se a gente tivesse chegado mais cedo tinha conseguido jantar de graça também.
— É mesmo, a gente não gastou nada até agora, a não ser sola de sapato!
— Sola de alpargata, no meu caso.
— Sabe se tem domingueira amanhã em algum lugar?
Faixa Bônus Exclusiva
Quando finalmente entramos na cidade, passamos por uma vizinhança um pouco perigosa, conhecida como “a rua dos trilhos” ou algo assim. Um grupo de seis sujeitos armados com facas e estiletes começou a nos seguir, e eu sabia que a noite ia acabar mal.
Finalmente eles nos cercaram, e pediram fogo. Eu não consegui dizer uma vogal que fosse, mas o Charles tomou a palavra.
— Ah, meu, é o seguinte… A gente foi a pé até o Fogão Gaúcho, porque não tem nem pro ônibus. Chegamos lá tinha um monte de gente que queria o nosso couro porque a gente dançou com as gurias deles. A gente teve que ficar escondido maior tempão numa carreta fedida, cheia de terra, pra não apanhar. Voltamos tudo a pé, morrendo de sede e de cansaço. Aí a gente chega aqui e vocês vão querer assaltar a gente? Por quê? O que a gente fez pra merecer?
Os caras começaram a rir de nós, e disseram que não iam nos assaltar.
— Quer dizer, a gente ia, mas vocês são mais fudidos que a gente, aí não dá.
E assim o Charles e eu ficamos quites um com o outro, pois na mesma noite em que eu salvei a nossa pele numa ação rápida na evasão da festa de aniversário em que entramos de penetras, ele fez o mesmo argumentando emocionadamente com uma gangue de assaltantes emaconhados da rua dos trilhos.
Se o sobrenome deste tal Charles é Pilger, então o mundo é um lugar muito do minúsculo.
Não. O Pilger era meu amigo nessa época também, mas não foi com ele que dividi esse episódio. 🙂
Mas bah indiio veio que baita história, me caiu os butiá do bolso. Rir de madrugada faz bem a alma. Baita abraço pelo causo..
Achei que chamavam a faixa de faixa em todo Brasil haha.
De qualquer forma quando li “Não me pergunta por quê, só sei que o garçom não cobrou!” entendi o que estava acontecendo ali e vi que não acabaria bem.
No resto do Brasil é “pista”. 🙂
Pista? lol. Pra mim pista é pista de pouso, ou de dançar.
De qq forma, foi erro da administração. Geralmente deixam um guri na entrada pra prevenir os desavisados que acham que e baile convencional.
Ahahahahaha Eu vim comentar pra dizer EXATAMENTE a mesma coisa!! Também achava que diziam “faixa” em todo Brasil! XD